Há precisamente 31 anos a nossa Directora Geral Fernanda Bravo, iniciou o desafio de abrir o primeiro colégio do país – Elizângela Filomena. Para celebrarmos a data, decidimos partilhar consigo uma das suas mais emblemáticas entrevistas, na ocasião, dada à Revista África Today.
- Cópia integral de Revista África Today – Nº 103
- Ano: 2013
- Escrito por Cláudia Cardoso e Ângelo Delgado
Na “pacífica” Benguela de há muitos anos, aprendeu a dar importância aos valores familiares e sociais. Paralelamente, o gosto pelo ensino e educação crescia. Deu aulas, ainda na sai cidade natal, mas não aqueceu o lugar. Pouco tempo depois é convidada para um cargo que exerceria durante uma vida: o de directora de escolas e colégios. Quase duas horas de conversa com Fernanda Bravo permitiram realizar um gigantesco flashback, onde temos como os pais de “hoje” e de “ontem”, a educação em Angola, o Elizângela Filomena, os projectos sociais, a guerra e as dificuldades em erguer uma escola fizeram parte do curriculum.
África Today: Como surgiu a paixão pela educação
Fernanda Bravo: Ainda na barriga da minha mãe! Com seis anos, já brincava às profissões e já tinha esta tendência de querer ser professora. Estudei, fiz o percurso normal e aos 18 anos senti a necessidade de trabalhar para ajudar os meus pais. Daí ao ensino foi um pulo: quando dei conta estava dentro de uma sala de aula [no ciclo, em Benguela] com 30 alunos a leccionar Desenho, que era a única disciplina que tinha horário vago, mas que dominava. No ano seguinte fiquei com História e depois mudei para Ciências Sociais.
O que recorda da sua infância em Benguela?
Essencialmente de coisas boas! A adolescência e a infância devem ser bonitas! Os meus pais eram rigorosos. Actualmente, e tenho imenso contacto com jovens, noto uma forma de estar diferente, onde se afirma que “o pai pode” que “o pai tem”, ou “o meu pai diz que posso estragar porque ele paga…”. Isto é um desvirtuar de valores que antes não ocorria. Respeitar as pessoas mais velhas e vencer os nossos limites foram sempre premissas defendidas pelos meus pais. O meu pai controlava os cadernos dos filhos, analisava o sumário das aulas…. Ajudaram-nos imenso a saber exigir dos nossos filhos nos dias de hoje.
Na sua opinião, quais devem ser as principais qualidades de um professor?
Gostar daquilo que faz, sentir que é a sua paixão e que é aquilo que quer e sabe fazer. Um professor do Ensino Superior pode ser um ditador de matéria, mas nós, no ensino de base, não podemos agir assim. Temos que chegar mais perto do aluno.
Como se definiria enquanto professora?
Digo sempre aos alunos que sou uma amiga. Mas, ao mesmo tempo, sei ser directora, mãe e, se for preciso, agirei. Regra geral, as crianças do meu colégio depositam muita confiança em mim, ao ponto de me confidenciarem situações particulares, algumas muito graves até.
Neste momento, possui um laboratório da juventude angolana nos seus colégios?
Temos mais de 3000 mil alunos nos colégios. Em Benguela são pouco mais de 900, com professores que conheço do meu tempo. Aí, têm mais saúde pedagógica que em Luanda. Na capital é um pouco mais complicado. São mais crianças, a procura é maior e há dificuldade em satisfazer pedidos, o que por vezes cria alguma animosidade com pessoas amigas que não acreditam que estamos com a lotação esgotada. No ensino privado temos de nos pautar pela qualidade e devemos respeitar o número de alunos por sala.
Fale-nos um pouco do seu percurso. Como passa de professora para a direcção de escolas?
Estive um ano e meio a dar aulas e, de repente, surgiu uma proposta para ser directora de uma escola. Antes, em 1976, fui a Cuba fazer uma formação em Gestão e Administração Escolar. Quando regressei escolheram-me para exercer esse cargo numa escola em Benguela. A partir daquele momento ninguém me tirou mais esse rebuçado da boca, ainda que tenha continuado a dar aulas a uma, duas turmas. Quando abri o colégio também dava aulas, pois era menos um salário que teria de pagar.
Como ganhou coragem para dar esse passo?
Abri o colégio em Outubro de 1991. Sabia que tinha feito um bom trabalho nos locais por onde tinha passado e decidi fazer algo meu. Porém, havia um grande problema: não tinha nada! Apenas uma enorme carga de esperança. Tive, no entanto, o apoio da família e amigos. Consegui instalar cinco salas de aulas com carteiras e os quadros vieram da Lupral, em Benguela. Constitui um corpo docente muito bom, com profissionais com anos de trabalho e que acreditaram em mim.
Quais foram os principais obstáculos sentidos na altura?
A ausência de regulamentação do decreto presidencial que permitia, enquanto sector privado, abrir um estabelecimento de ensino foi uma das maiores dificuldades. Os alunos, no início, eram discriminados porque só passavam com a nota final do exame. Foi uma luta enorme para mostrar que as crianças deveriam ter os mesmos direitos. Outros dos maiores constrangimentos foi ter que, em diversas ocasiões, pagar do meu dinheiro para comprar material escolar. Fiz os possíveis para nada faltasse aos professores e, claro, aos alunos.
Com quantos alunos abriu o colégio?
Tínhamos 400 a 500 crianças. Hoje, tenho, em todos os colégios, 300 professores. Naquela altura éramos muitos menos.
Os pais “compraram” bem à ideia de um colégio provado?
Os pais queiram algo de diferente para os seus filhos. Estávamos na época da lata de leite, de levar o banco de casa para a escola…. Quando cheguei de Benguela, em 1986, dirigi uma escola em Luanda em que toda a gente se sentava em pedaços de madeira, restos de carteiras, não havia um vidro nas janelas! Pensei: “deixo o meu Liceu, lindo e maravilhoso em Benguela, onde não tenho ninguém de pé, tenho laboratórios, tudo organizado e venho para uma escola sem condições?”. Encontrei nessa escola o filho do Presidente da República e, convém frisar, tinha as mesmas condições que os outros meninos. No ano seguinte, através de uma comissão de pais, conseguimos que o Ministério da Defesa apadrinhasse a escola. Fizemos obras e em dois anos transformei aquele espaço numa escola de referência na cidade.
Em 1991, abre o seu colégio: Elizângela Filomena. Como surge este nome?
Pensei em “Pensador”, mas depois desisti da ideia. Lembrei-me: “tenho uma filha e vou dar ao colégio o nome dela”.
O nome é uma homenagem à sua filha ou uma forma de ela se orgulhar de si?
Um pouco das duas…. Há momentos em que ela me questiona o facto de ter dado ao colégio o seu nome. Sinto que isso lhe cria algumas dificuldades, mas acho, ainda assim, que ela se orgulha. Foi, para mim, muito importante ter dado o nome da minha filha ao colégio.
Pais e filhos. De “ontem” e de “hoje”
Que diferença observa nas gerações de agora quando comparadas com as de há 20 anos?
O encarregado de educação de “ontem” era mais humilde. Tinha uma capacidade financeira menor, mas os valores eram maiores. O de “hoje” tem uma boa dose de materialismo: “eu faço”, “eu aconteço”, “não sei por que razão o meu filho não estuda pois não lhe falta nada”, “dou-lhe o melhor telemóvel”, “tem televisão no quarto…”. Estes são os instrumentos que os pais de “hoje” acham que são suficientes para educar e instruir o filho. Às vezes, pergunto aos familiares: “O pai dá tudo isso, o menino tem tudo, óptimo! Mas tem-no a si como pai ou mãe? A família está lá, ou acha que está porque a criança tem tudo?”.
É da opinião que antigamente os pais tinham uma relação mais próxima com a escola?
Sem dúvida! Quando envio uma convocatória para casa, o pai envia-me o motorista ou o segurança à reunião. Os pais não têm tempo, pois a escola “é chata”, dizem! E, atenção, não se trata de uma minoria, embora também não seja a maioria. A tendência é que estes casos aumentem.
Ensino, formação e futuro
Existe algum modelo pedagógico no qual se inspire?
Tenho feito formações e procuro trazer a nossa realidade algumas experiências adquiridas. O diagnostico de alunos é um exemplo! Conhecer quais as dificuldades de cada criança é uma ferramenta muito útil. Com estes argumentos conseguimos dizer aos pais quais as principais dificuldades dos seus filhos.
Qual é, para si, a definição de escola?
A escola educa e instrui. Mas devemos, igualmente, ter disponibilidade para mostrar aos mais pequenos o lado bom e saudável da vida. Por vezes, apareço nas salas de aula e exclamo: “o que vos podem tirar é o conteúdo do que aprendem!”. Digo-lhes que i importante é apostarem nos conhecimentos que adquirem e que deixem de lado questões materialistas.
O Elizângela Filomena pode considerar-se um espelho da sociedade angolana?
O nosso projecto educacional é político-pedagógico porque, na minha opinião, qualquer programa pedagógico deve estar enquadrado como compromisso na formação do homem novo de forma multifacetada. O programa pedagógico do colégio deve ser abrangente, falando um pouco de tudo e não apenas dos conteúdos programáticos. Quando é o Dia da Droga, falamos sobre ela, o mesmo acontece com o Dia do Ambiente ou outras datas.
Qual o impacto da Internet ou das redes socias no comportamento das crianças?
Há diversos pontos negativos. As crianças escrevem muito mal por causa disso. Se formos ler uma mensagem dos miúdos, a maior parte é imperceptível! É preocupante.
Os pais, hoje, são muito distraídos?
Somos cada vez mais surpreendidos com situações que têm estado a acontecer e que os pais não conseguem entender como se chegou até ali. Para dizer a verdade, não percebo esta perplexidade, pois se os filhos têm acesso à Internet, há uma necessidade urgente em saber em que sites navegam! Encontramos alunos do Ensino Primário a consumir pornografia explícita. Os encarregados de educação não têm conhecimento do que os filhos andam a ver em casa? Às vezes tiramos os telemóveis aos alunos, mas, num ápice, surgem os pais a dizerem que precisam daquele aparelho para comunicar com os filhos…. Já houve uma situação em que o motorista colocou imagens pornográficas no telemóvel de um menino! É assustador.
Tendo em conta a sua auscultação diária junto das crianças, o que lhe parece o futuro destes jovens? O que querem ser quando forem adultos?
Boa parte deles tem bons objectivos e têm sede de aprender. Querem formar-se e ser quadros deste país. Não podemos dizer que está tudo mal, pois isso não corresponde à verdade! Como o nosso trabalho, modificamos a visão que algumas crianças têm das suas vidas e do seu futuro. Cada faixa etária tem a sua ilusão: existem as que querem ser hospedeiras, os que pretendem ser médicos, engenheiros… há ainda os que chegam ao 12º ano e dizem: “Não quero continuar em ciências, que ser jurista”. Isto acontece na maior parte das vezes aos 18 anos, já com alguma maturidade.
Que opinião tem sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa?
Preciso de tempo para o digerir. Ainda não o fiz e penso que é precisamente isso que o país esta a fazer, daí não termos ainda ratificado o Acordo.
Considera haver falta de formação em Angola?
Deveria haver uma maior qualificação de quem ensina. Nota-se que as dificuldades começam aí. Temos de investir mais neste ramo, porque o aluno é fruto daquilo que o professor ensina. Ou forma ou deforma. Costumo dizer que o país é constituído por mutilados de guerra e mutilados de ensino, e não sei se estes últimos não serão em maior proporção.
O que é preciso para se investir este ciclo, e o Ensino encontra o rumo correcto?
Já temos escolas em todo o país. Agora, temos de analisar quem está na escola? Quem ensina as crianças? Isto não se resolve com concursos públicos documentais. Resolve-se, sim, quando os professores forem sujeitos a rigorosos testes de admissão, como fazemos no ensino privado. Temos que colocar o pedagogo à altura do desafio e com competência para que possa ensinar com sucesso. Caso contrário, teremos mercenários apenas motivados em ganhar o seu salário e não professores que trabalham pela nobre missão de formar uma sociedade.
Se a sua neta já a entendesse, que conselho lhe daria para o futuro?
Dir-lhe-ia para ter espírito de guerreira como a avô e humildade, como a mãe.
Rigor, disciplina e pontualidade…. Sempre!
Quem é ou foi aluno Elizângela terá sempre um carimbo de qualidade. Os horários são para cumprir e o uso de telemóveis dentro do Colégio está proibido. Os “Elizângela”, como carinhosamente Fernanda Bravo designa os alunos que frequentam ou frequentaram o seu Colégio, distinguem-se bem dos demais, após completarem o 12º estão preparados para as exigências do Ensino Superior.
Críticas ao Ministério
Os elogios aos seus alunos não são, porém, extensíveis ao Ministério da Educação. Segundo a directora do Elizângela Filomena, os programas curriculares não estão adaptados às exigências da actualidade. “Não temos autonomia nem paralelismo pedagógico. O Ministério da Educação ainda não ganhou coragem para melhorar o que já foi diagnosticado. Andamos a trabalhar com conteúdos desactualizados, como por exemplo, o programa de História e Geografia”.
Bálsamo para transformar vidas
Com a mesma garra e vontade com que abraçou o desafio de dirigir escolas, Fernanda Gilberta Bravo, não ficou alheia às circunstâncias dos mais vulneráveis, crianças e jovens, durante após a guerra civil. Conta-nos, que em 1990, viu na televisão uma notícia sobre o campo de deslocados que se instalava na zona de viana (a norte de Luanda). Ficou tão impressionada com a dimensão e número de pessoas, que de imediato foi visitar o mesmo. Ai ver a quantidade enorme de crianças, Fernanda Gilberta não pode ficar de braço cruzados: “Vi aqueles rusquinhos, e decidi dar o meu contributo no que sei fazer. Montei uma sala de aulas, levei mesas e fiz umas batas castanhas para eles. Comecei a fazer matrículas logo ali… eram 200 alunos por dia!”, explicou a professora, que acrescentou ainda que “logo recrutamos professores que estavam no campo e mediante um salário, iniciámos as aulas”. Ainda sobre o campo de Viana, Fernanda Gilberta conta que as condições eram as possíveis e que própria passou por uma situação aldo semelhante. “as condições eram as que o governo conseguia dar, era impossível mais. Em 1975 deixei Benguela em direcção a Luanda apenas com a roupa que tinha no corpo. Sei bem o que é deixar tudo para trás! Para aquelas crianças éramos um bálsamo nas suas vidas”, recorda.
Os meninos da Martal
“O Ministério da Assistência da Inserção e o Instituto da Criança ajudaram-nos imenso neste programa. Apanhávamos as crianças às 17 horas e levávamo-las para o colégio, onde tinham aulas à noite. Tomavam banho no colégio, vestiam os nossos uniformes e iam depois para as salas”, conta. Quanto ao processo de ensino, começar da base foi a estratégia adoptada. “alguns já tinham frequentado a 2ª classe, outros ainda não sabiam as vogais. Optámos por começar o processo de aprendizagem do Zero”, relata Fernanda Gilberta. Um dos grandes orgulhos de vida da docente, deu-lhes casa e formação, pois tem plena noção que se tivesse deixado aqueles jovens na rua, hoje seriam delinquentes.
A directora trabalho também com o Lar Kuzola, a quem disponibilizou dez bolsas para que os alunos do lar possam estudar no Elizângela Filomena.